A criação do Microempreendedor Individual (MEI), há 16 anos, já comprometeu R$ 711 bilhões no orçamento futuro da Previdência Social. O valor, calculado e atualizado em reais, representa o déficit atuarial gerado pela diferença entre os benefícios que deverão ser pagos e os recursos arrecadados por esse grupo. Se houver crescimento real de 1% ao ano no salário mínimo, esse déficit projetado sobe para R$ 974 bilhões.
As estimativas fazem parte de um estudo realizado por Rogério Nagamine, ex-subsecretário do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e atual pesquisador do Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
Segundo o estudo, o modelo atual do MEI representa uma ameaça estrutural à sustentabilidade da Previdência Social, principalmente devido à baixa arrecadação associada ao regime e ao envelhecimento populacional acelerado.
Contribuição reduzida não cobre benefícios futuros
O MEI permite que trabalhadores autônomos contribuam com apenas 5% sobre o salário mínimo para ter acesso a benefícios previdenciários, como aposentadoria por idade, pensão por morte, auxílio-doença, salário maternidade e aposentadoria por invalidez.
Com essa alíquota, a contribuição total em 15 anos —tempo mínimo exigido para aposentadoria por idade— gira em torno de R$ 18 mil. Esse valor, no entanto, é rapidamente recuperado após a concessão do benefício.
“Em um ano, o aposentado já recebe de volta o que pagou”, afirma a advogada Adriane Bramante, conselheira da OAB-SP e do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP). Para ela, embora o MEI tenha promovido a inclusão de trabalhadores informais no sistema, o regime se mostra financeiramente insustentável a longo prazo.
De acordo com a Receita Federal, os MEIs já representam quase 12% dos contribuintes do INSS, mas respondem por apenas 1% da receita previdenciária.
Déficit pode chegar a R$ 1,9 trilhão nas próximas décadas
Nagamine estima que, mantidas as regras atuais, o MEI poderá gerar um rombo total de R$ 1,9 trilhão no RGPS ao longo dos próximos 70 anos.
O cálculo considera os inscritos no MEI com ao menos uma contribuição no ano de 2020, analisando idade, sexo, expectativa de vida com base na tábua de mortalidade do IBGE e projeções de benefícios que esses trabalhadores terão direito a receber. O cruzamento das informações revela que a arrecadação gerada não será suficiente para cobrir os custos com aposentadorias e auxílios futuros.
Uso do MEI distorce mercado de trabalho e modelo previdenciário
Além do impacto financeiro, o estudo aponta distorções causadas pela migração de trabalhadores formais para o regime simplificado, muitas vezes estimulada por empregadores que buscam reduzir encargos trabalhistas.
“Em algumas áreas, como salões de beleza, a substituição do vínculo celetista pelo MEI é acelerada”, alerta Nagamine, citando como exemplo a Lei do Salão Parceiro, que permite a formalização como MEI em contratos de parceria.
Há também casos de profissionais com formação superior atuando como MEI. “Faculdades privadas estão deixando de contratar professores com carteira assinada e os registram como microempreendedores”, afirma.
Debate sobre ampliação do limite de faturamento gera preocupação
Apesar das críticas, propostas em tramitação no Congresso Nacional sugerem ampliar o limite de faturamento anual do MEI dos atuais R$ 81 mil para até R$ 130 mil, com possibilidade de contratação de mais um funcionário.
Para Nagamine, o cenário político tem reforçado esse movimento, especialmente em períodos eleitorais, o que pode ampliar ainda mais o déficit e o desequilíbrio previdenciário.
A conselheira do IBDP, Adriane Bramante, também defende um debate sobre o limite de renda. “Quem fatura R$ 81 mil ao ano não é baixa renda. Talvez seja hora de ajustar o modelo para garantir a sustentabilidade da Previdência”, avalia.
MEI é usado para obter benefícios indiretos, como plano de saúde
Outro ponto levantado no estudo é o uso do CNPJ do MEI para fins não relacionados à atividade produtiva, como a contratação de planos de saúde.
“Há pessoas que não conseguem contratar plano como pessoa física e abrem MEI apenas para isso. Isso foge da finalidade do regime”, observa Bramante.
Segundo especialistas, a fiscalização e o controle precisam ser aprimorados para evitar o uso indevido do modelo e garantir que ele cumpra sua função original: formalizar pequenos empreendedores que antes estavam totalmente à margem da legalidade.
Inclusão previdenciária x pressão sobre os cofres públicos
Apesar das distorções, Adriane Bramante defende que o MEI ainda é melhor do que a informalidade plena, já que muitos desses trabalhadores, no futuro, recorreriam ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda.
O BPC não exige contribuição prévia e paga um salário mínimo, sem 13º ou pensão por morte. Já os benefícios do MEI incluem aposentadoria, auxílio-doença, pensão e salário maternidade, o que amplia o custo futuro.
Para Nagamine, essa substituição não alivia o sistema. Pelo contrário: “Com o MEI, além da contribuição ser pequena, há geração de benefícios programados e não programados, o que pressiona ainda mais a despesa pública.”
O estudo publicado pelo FGV Ibre acende o alerta sobre os riscos fiscais e previdenciários do modelo atual do MEI. O desequilíbrio atuarial já contratado, estimado em R$ 711 bilhões, e as projeções futuras de um déficit superior a R$ 1,9 trilhão indicam a urgência de ajustes estruturais.
Para o público contábil, é essencial acompanhar o debate sobre a sustentabilidade da Previdência e o papel do MEI na estrutura trabalhista e tributária do país. A revisão do modelo, seja por meio da reavaliação das alíquotas, das regras de enquadramento ou da fiscalização, pode ser determinante para evitar um colapso futuro nas contas do RGPS.
Com informações adaptadas da Folha de S. Paulo